Sunday, May 09, 2010

O TEMPO


Se na infância e adolescência o tempo já me clareava sua capacidade de funcionar em ciclos, independente de nossa vontade ou de calendários, agora na fase adulta ele acabou por confirmar minhas suspeitas. Suas engrenagens têm tempo de vida e não é possível a nenhum de nós prolongá-las além de sua validade. Ele processa seu ritmo. Estamos todos nós enredados em seus fios, à espera do fim ou um recomeço.
Mas que fios são esses que nos amarram ao tempo e a suas vontades? Seriam laços ou nós que nos atam ao fazer inexorável das coisas... sempre alheios ao nosso desejo.
O primeiro desses laços (ou realmente seriam nós?) é o mais íntimo e indissolúvel. Ouso dizer que o trazemos preso em nosso calcanhar direito desde o primeiro choro até o derradeiro suspiro (eu sei que está brega, mas me deu vontade de escrever isso). São essas as primeiras páginas que escrevemos de nossa história e, em muitos casos, encerram-se aí mesmo os ciclos do tempo. Esse tempo de olhar pra baixo e pra dentro... Não se vê muito além.
Para outros esse ciclo é rápido. Encerra-se ao primeiro impacto da mão. Daí inicia-se outro simplesmente para ter um fim tão veloz quanto o primeiro. E assim sucedem-se os intermináveis ciclos desse tempo célere e sem rédeas. Até que ele percebe-se superficial e tênue, rompendo sua essência e seus fios. Assim, fecha-se esse último e derradeiro ciclo.
Mas não é apenas de extremos que o tempo se faz. Ele também é entremeado de ciclos lentos e longos. Entremeado de pontas soltas, trata de uni-los no tecer das horas. À luz da fogueira onde se queima o tempo passado, costura-se o tempo futuro. Se para uns os livros são breves. Para outros são muito longos. Se para uns, apenas um volume retrata toda uma vida, para outros se faz necessária uma enciclopédia.
Não importa o tempo que o tempo possa ter ou se dar, todo o começo se inicia no mesmo ponto. Toda a partida, ainda que breve, está ancorada em um mesmo porto. Essa instituição sanguínea, ainda que laço roto ou âncora forte, é a primazia do princípio. Nela tudo repousa. A ela tudo retorna.
Vez por outra paro para ver a dança do tempo. Seu bailado é muita vez incompreensível. Daí a minha estranheza das coisas. Olhar de lado... Olhar atravessado... Olhar de fechar os olhos... Então, quando não existe mais afinidade ao tempo, aprendo a vê-lo como realmente o é. Diviso seus contornos e me atiro em suas saias. Danço. Rio. Escorro. Morro. Fluído e volátil, sinto que me escapa pelas mãos. Pelo vão da palma incerta, indo alojar-se no desvão da memória. E lá permanece a me fitar.
Então, irmanado com o sabor de seu giro, percebo que no girar das rodas mais um ciclo se encerra... Novamente paro... E vazio tento me agarrar às bordas desse ou daquele tempo em que tudo era, agora que nada mais pode ser. Mas não me resta mais tempo. O tempo que se foi, agora jaz no ciclo da infância. São necessárias outras páginas.
Necessito de um novo capítulo, que conte histórias de um tempo em que se podia agarrar o próprio tempo com as mãos. Um tempo que se podia brincar de infância... com relógios de tempo dotados de ponteirinhos de horas que eram ponteirões. Um tempo que parava suas engrenagens para ouvir o ranger de suas conexões.
No desvão dessas histórias, perdido entre linhas tortas, o tempo parou um dia para me contar um conto. Ele me disse de um instante, perdido entre o ontem e o amanhã, mas que não se enxergava como hoje. Nesse instante, onde tudo pára para se ouvir o cair das folhas, ele narrou a história de um menino que um dia esperou pelo tempo que não veio.
Esse menino, ao perceber seu tempo se esgotando, tentou agarrá-lo com as mãos nuas. Mas aquele tempo era muito veloz. Parecia que passava mais rápido para ele do que para todo mundo. Mal o menino piscava e o tempo já cumpria mais um ciclo. Nesse fechar de olhos tudo se foi. Esvaiu-se sua infância. Murchou seu pai. Despetalou-se seus amores. Findaram-se seus sonhos.
Totalmente desprovido de ontem e sem conseguir ver o amanhã, o menino, agora homem, teimou em pensar no tempo como uma roda gigante. Ele gostava de pensar nele assim. As rodas gigantes de sua infância (elas chegavam uma vez ao ano, sempre no mês de julho) eram tão magnificamente acrofóbicas, que ele sempre esperava o ano seguinte para subir-lhes à crista e tocar o céu com as mãos. Os anos se passavam e elas sempre voltavam. E, no julho seguinte, o menino teria uma nova chance de subir ao firmamento antes de descer ao inferno.
O menino só não contava que talvez a volta dessa roda chamada tempo fosse tão longa que seus olhos sem piscar não suportassem a areia despejada ali pelas mãos do próprio tempo.
Ele esperou... e esperou... e esperou... e esperou... Chorou para manter os olhos úmidos e abertos. Observou o girar lento e constante da roda. Sem entender o porque dessa velocidade tão diversa daquela entendida pelos olhos do passado, ele esperou.
Sem esmorecer um instante sequer, o menino, agora velho, sentiu o girar das coisas. Suas pálpebras pesaram desmedidamente. Um sono de um tempo sem sono abateu-se sobre sua cabeça. Ela pendeu pesadamente.
O menino, agora tempo, finalmente entendeu que o girar das coisas obedeciam a um ciclo que estava além de sua compreensão. Ele finalmente chorou, não pelo tempo passado, mas pelo perdido.
Então o menino, agora lágrima, deixou-se levar pelo final de seu tempo. Agora areia na ampulheta do tempo, deixou-se cair até o esquecimento.
Fechando-se nas páginas esquecidas, num repouso marcado por uma orelha amarelada, o tempo me disse que esse menino de olhos secos havia esperado por um tempo que não lhe pertencia. Esse menino-saudade tentou apanhar a cauda de um tempo que ainda não passara, para não perceber o tempo que se perdia. Perdeu-se de seu ciclo. Não encontrou a porta de entrada para o ciclo seguinte.
Assim é o tempo e seus ciclos e engrenagens. Nos atiram ao sabor do vento, simplesmente para nos colher em seus braços tardios. Isso porque sempre acabamos no mesmo ponto onde iniciamos. É esse laço (ou seria nó) consangüíneo que governa nossos quereres por todo o nosso tempo, até que se fecha mais um ciclo e ele se ata inexoravelmente a nosso calcanhar esquerdo.

No comments: